Violência Doméstica

Rodrigo Bello

1 – Apresentação do Tema

A reportagem vista na página anterior, dá o tom de nosso trabalho da Parte Especial do Direito Penal. Além, lógico, de trazer a importância do tema. A violência doméstica, especificamente, contra a mulher, será objeto de análise, não só jurídica como também social. Este inclusive foi o motivo de colocarmos famosa frase de Nelson Rodrigues na parte introdutória deste artigo. Se de um lado temos a preocupação em impedir que a violência doméstica cresça, e veremos o que tem sido feito nesse sentido, não podemos deixar de enfatizar a sociedade conservadora e machista em que vivemos. Muitos homens, os chamados “machões de plantão”, enaltecem esta frase que tem o singelo objetivo de trazer certa carga social ao trabalho que se inicia neste instante.
Procuraremos trazer dados importantes sobre o tema, obtido nos diversos institutos de defesa da mulher e também em pesquisas de campo.
Perguntas, revoltas e indignações fizeram com que analisássemos questões sociais, motivos e principalmente angústia das vítimas. Como a sociedade encara hoje vítima e agredido em relação a esse crime. A mídia ajuda ou atrapalha?
No aspecto jurídico, veremos como o legislador, doutrina e jurisprudência vêm encarando o tema de altíssima importância nos dias atuais. Será que nossa lei é suficientemente efetiva nesse aspecto? Logo no primeiro capítulo a seguir, veremos as razões legislativas que fizeram com que houvesse o acréscimo do §9º do artigo 129 do Código Penal, que trouxe a especificidade da violência doméstica (lei 10886/04). Era necessária? Quais foram os motivos? Aumento da violência contra a mulher? Ou seria mais uma medida, uma resposta do legislador infraconstitucional para dar aquela “pseudo-tranquilidade” aos cidadãos que acreditam que a norma penal resolve todos os males da criminalidade brasileira? Seria mais um suspiro do chamado Direito Penal Emergencial?
A violência contra a mulher, por si só, já é revoltante. Sabendo disso, não iremos nos ater tão-somente aos conceitos jurídicos, como ditos anteriormente. Nosso desafio na escolha desse tema foi justamente aprofundar ainda mais, principalmente o aspecto social, até porque o tema nos permite isso. Procuraremos estudar dados e reportagens atuais acerca desse mal que é cometido contra as mulheres brasileiras.

2 – Trâmite Legislativo

A lei 10.886/04 acrescentou em nosso Código Penal Brasileiro, o §9º ao artigo 129 – Lesões Corporais. A inovação legislativa trouxe a chamada Violência Doméstica. Vejamos abaixo o texto legal, antes de verificarmos as razões legislativas que acarretaram nessa mudança:
“Art. 129 §9º. Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.
§10º. Nos casos previstos nos §§1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no §9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).”
Antes de estudarmos esta norma penal vigente, iremos aprofundar as razões legislativas que fizeram com que a Sra. Deputada Iara Bernardi do PT de São Paulo apresentasse o projeto de lei nº3 de 2003, que teve como conseqüência esta alteração legislativa.
Por ser de suma importância para nosso trabalho, colaremos, na íntegra, a justificativa pela então Deputada Federal apresentada no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados:
“Atualmente em nosso país milhares de mulheres ainda vivem o drama da violência física, emocional e sexual como uma questão que diz respeito à privacidade de cada uma, como se ela estivesse envolvida num manto invisível de hipocrisia: sentido por todos, mas rodeado pelo silêncio cúmplice da sociedade. Esta violência só vai acabar quando for rompida a barreira do medo, da vergonha e da crença pela impunidade. A violência doméstica deve ser tratada como uma questão pública, um problema social, que deve ser objeto de ação governamental e punida com o rigor da nossa legislação Penal.
No Brasil a situação é bastante grave. Segundo a Sociedade Mundial de Vitimologia, com sede na Holanda, e que pesquisou a violência doméstica em 138 mil mulheres em 54 países, foi constatado que 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas à violência doméstica. A cada 4 minutos, uma mulher é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com quem mantêm relações de afeto.
O jornal Folha de S. Paulo (6/5/01) trouxe importante reportagem, informando que o Brasil fora condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, por causa da violência doméstica.
A condenação sofrida pelo Brasil tem caráter de sanção moral, de constrangimento em nível internacional, conforme aponta a Dra. Silvia Pimentel, do Comitê Latino-Americano pela Defesa do Direito das Mulheres - CLADEM. Na decisão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda ao governo brasileiro que pague à vítima uma indenização e que promova de forma rápida e eficiente o julgamento criminal contra o agressor.
De fato, a condenação brasileira pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos atingiu uma área em que realmente nossas autoridades e nossa legislação são omissas e ineficientes. E não é por acaso, evidentemente, pois refletem hábitos culturais, permeados por um arraigado e profundo machismo nas mínimas coisas, que ainda enxergam a violência doméstica contra a mulher como intrínseca aos relacionamentos, à intimidade do casal e, especialmente, como afirmação masculina.
Tanto é assim que há músicas que falam que “tapinha não dói” ou que mulher gosta de levar “tapa na cara”. E ninguém protesta, aliás, pelo contrário, as músicas são sucesso nas rádios e nos programas de TV.
Em estudo sobre a violência doméstica feito por duas pesquisadoras da PUC de São Paulo, em 1994, tendo como base boletins de ocorrência, verificou-se que 81,5% das queixas foram de lesão corporal intencional, especialmente pancada. Desses inquéritos, 70% foram arquivados. Os que foram adiante, em 10% os agressores ainda foram absolvidos.
Não se pode tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência, como é o caso de maridos e companheiros em detrimento de suas esposas, companheiras.
O delito praticado por estranho em poucos casos voltará a acontecer, muitas vezes, agressor e vítima sequer voltam a se encontrar, já o delito praticado por pessoa da convivência tende a acontecer novamente, bem como, pode acabar em delitos de maior gravidade, como é o caso do homicídio de mulheres inúmeras vezes espancadas anteriormente – esta especificidade da violência doméstica exclui os delitos decorrentes desta forma de violência da classificação “menor potencial ofensivo”. Embora tecnicamente, levando-se em conta a pena – no caso das lesões corporais leves e da ameaça – a classificação seja menor potencial ofensivo às circunstâncias que cercam tais delitos majoram este potencial.
Partindo-se desta primeira consideração, a segunda que devemos fazer é a de que configura um grande ônus para a vítima de violência doméstica a decisão de representar ou não o agressor, deve-se levar em conta que este agressor, na maior parte dos casos, é também o pai de seus filhos, a pessoa que dorme ao seu lado todas as noites. Em diversos países que adotaram leis semelhantes, como o caso da Itália, supriu-se esta necessidade de representação em casos onde houvesse relação de poder entre a vítima e agressor, dentre tais relações, os casos de marido e mulher.
Neste sentido, a nossa proposição é para que se altere o Código Penal brasileiro para qualificar a lesão corporal leve prevista no Código Penal, criando o tipo especial denominado “Violência Doméstica”; e alterar o art. 324, do Código de Processo Penal, tornando inafiançável a “lesão corporal leve” e a “lesão corporal grave”, quando o crime for cometido por “agressor doméstico”.
Ao apresentar tal proposição, esperamos contar com o apoio dos nobres pares, para atender ao desejo e reclamo de milhares de mulheres agredidas e oprimidas neste país e para colocar o Brasil entre os países cuja legislação protegem as mulheres dessa condenável, absurda e covarde forma de violência, como recomendou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção de Belém do Pará – ratificada pelo Brasil em novembro de 1995.”
Analisando as palavras da digníssima Deputada Federal verificamos, de plano, que o objetivo primordial da alteração legislativa foi uma tentativa de coibir a agressão à mulher. Apesar do §9º do artigo 129 do CP falar em violência doméstica e ter como sujeitos passivos outras pessoas que convivam sob um mesmo teto, o móvel da inovação foi à mulher. Sem sombra de dúvidas.
Não é à toa, que em suas razões, a deputada faz questão de enaltecer o machismo, dando como exemplo, as músicas que fazem sucessos nas rádios tupiniquins, diferente de nós, que trouxemos a frase de Nelson Rodrigues. Exige ela um rigor maior da legislação penal, criticando ainda o sistema processual que encara a matéria, pois atualmente há necessidade de representação nos casos de lesões corporais leves e culposas (artigo 88 da lei 9.099/95).
Em uma verdade devemos concordar com o que foi exposto anteriormente. Realmente em se tratando de violência doméstica, dificilmente as lesões acontecem uma única vez. Por mais duro que possa parecer, alguns homens possuem o hábito de maltratar suas companheiras cotidianamente.
Assim sendo, interessante neste instante será verificarmos as nuances e o trajeto que uma proposta de lei pode ter até ser transformada em lei com efeitos erga omnens. Sua apresentação ocorreu em 18.02.2003. Em 11.03.2003 foi enviada à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados. Distribuída ao relator, Dep. Inaldo Leitão, este proferiu parecer no sentido da constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, com emenda e, no mérito, pela aprovação. Em 19.08.2003, o parecer foi aprovado por unanimidade pela Comissão. Submetida a plenário em 27.11.2003, foram apresentadas 5 ementas assim distribuídas (Dep. Laura Carneiro, Dep. Celso Russomano, De. Sandra Rosado, Dep. Inaldo Leitão e Dep. Iara Bernardes, com uma ementa substitutiva).
Com estas ementas, o projeto de lei novamente retorna à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJ), no mesmo dia, em 27.11.2003 com novo relator, o Dep. Reinaldo Betão. Em plenário, também no mesmo dia, tendo em vista pedidos de urgência, a redação final oferecida pelo Dep. Osmar Serraglio, vai para o Senado Federal.
Em 12.05.2004, o Senado Federal, atuando como Casa Revisora, aprova o projeto de lei com substitutivo, fazendo com que este retorne à Câmara dos Deputados.
Recebida novamente pela CCJ da Câmara, a relatora, Dep. Laura Carneiro, em 27.05.2004, conclui pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação do § 9º para substituir o § 9º do texto da Câmara, exceto a pena, para prevalecer à pena prevista no texto da Câmara, e do § 10, e pela rejeição dos demais dispositivos do Substitutivo do Senado Federal.
Finalmente, em 27.05.2004, a redação final oferecida pelo Dep. Antonio Carlos Biscaia (PT/RJ), é aprovada em plenário. Em 31.05.2004 a matéria é enviada para sanção presidencial, com a conseqüente transformação em lei apenas no dia 17.06.2004.
Enfim, nasce a lei 10.886/04.

3 – Conceitos Jurídicos

Neste momento aprofundaremos o tema quanto aos conceitos jurídicos envolvidos. O que caracterizaria uma violência doméstica, por exemplo, será uma das indagações que passamos a fazer.
Preliminarmente, importante conceituarmos lesão corporal e, para tanto, nos valeremos das palavras do professor Julio Fabbrini Mirabete. Para ele, “o delito de lesão corporal pode ser conceituado como a ofensa à integridade corporal ou à saúde, ou seja, como o dano ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental.”
O bem jurídico tutelado, sem sombra de dúvidas, é a integridade física ou psíquica do ser humano.
Partindo destes conceitos gerais, nos dirigimos ao estudo específico do §9º do artigo 129 do CP brasileiro, que trata da violência doméstica.
O que quis dizer o legislador com “violência doméstica”? Para Guilherme da Souza Nucci, em seu festejado Código Penal Comentado, “doméstico é termo que diz respeito à vida em família, usualmente na mesma casa.” Interessante é a crítica feita pelo professor em relação a esta inovação legislativa. Assim continua: “Mas, para atingir de fato, sem demagogia, as situações de violência doméstica, não se poderia partir de uma cominação de pena pífia. Note-se, desde logo, que uma lesão corporal leve dolosa, onde quer e por quem quer que seja cometida, tem a pena abstrata estabelecida em detenção de 3 meses a 1 ano. Destarte, o legislador, pretensamente para fazer frente ao incremento da punição aos agressores familiares, fixou a pena de detenção, de 6 meses a 1 ano. O que mudou? O mínimo legal dobrou de 3 para 6 meses. E por quê? Somos levados a concluir que para nada de autenticamente útil.”
A suposta severidade tão almejada pela Deputada Iara, então iniciadora deste projeto, não se realizou realmente. Tais crimes, de violência doméstica, continuam sendo considerados de menor potencial ofensivo. Assim, eventual agressor, altamente criticado pela sociedade, poderá usufruir de todas as medidas despenalizadoras que podemos verificar no procedimento do juizado especial criminal (lei 9.099/95). Deparar-nos-emos com um assíduo agressor de sua esposa, num processo criminal, por exemplo, efetuando pagamento de algumas cestas básicas, em suposta anuência com a proposta do Ministério Público, de transação penal.
Diferente não foi à constatação do Encontro Estadual das Delegacias da Defesa da Mulher de São Paulo, realizado em 10.12.2001. O anúncio publicado para atrair a atenção dos participantes era a seguinte: Ela apanhou, denunciou, processo, ganhou e sabe o que o agressor pagou? Uma cesta básica.”
A pergunta que se deixa no ar é a seguinte: Este pagamento trará algum tipo de justiça, por mais difícil que pareça podermos almejar uma pena justa-retributiva? Pelo menos devemos procurar o mais perto possível disso, não é verdade? Acreditamos que neste passo, foi mal o legislador.
Para o ainda consultado professor paulista Souza Nucci: “Se alguma vantagem houve, está concentrada na ação penal, que passa a ser pública incondicionada.” Esta interpretação é feita, pois a necessidade de representação do ofendido só será necessária no caso de lesões corporais leves e culposas, e a violência doméstica, agora passou a ser considerada uma lesão corporal “qualificada”.
Para o juiz de direito de São Paulo, José Maurício Conti, em artigo publicado sobre o tema, “É de se reconhecer que um ordenamento jurídico desta forma estruturado não esteja cumprindo a determinação constitucional expressa e inequívoca no sentido de que cabe ao Estado, na defesa da unidade familiar, criar "mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações", como explicita o art. 226 da Carta Magna.”
Analisando ainda a norma legal, sem grandes dificuldades, verificamos os sujeitos passivos deste crime. Pela redação do artigo, são eles: “ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade.” Pela simples leitura, verificamos que a agressão não precisa ser necessariamente no lar, pois o tipo penal não exige esta obrigatoriedade.
E a agressão quanto à empregada doméstica? Ela estaria incluída no rol do §9º do artigo 129? Acreditamos que sim, sendo passível de crítica este entendimento. Ousamos discordar do penalista e processualita Souza Nucci, que sustenta uma interpretação diferente neste sentido, pois esta deveria ser literal, ou seja, quando a norma fala em “conviva ou tenha convivido” ou ainda em “relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade”, o legislador quis referir-se tão-somente às pessoas elencadas no início da redação. Assim seria somente aplicável “aos ascendentes, descendentes, cônjuge ou companheiro”.
A crítica que fazemos nesse sentido é de acharmos que a empregada doméstica, muito das vezes, é uma verdadeira pessoa da família e assim constatando-se, aplicaríamos a tipificação de violência doméstica. Ao nosso sentir, a norma não se aplicaria as simples diaristas que apenas ficam dias na casa do patrão para fazer serviços específicos e que voltam para sua casa.

4 – Efetividade da Norma

Nossa intenção neste instante é verificar alguns aspectos jurisprudências acerca da matéria, ora trabalhada. Quando falamos em eficácia, devemos pensar na capacidade que a lei tem em produzir efeitos. Já efetividade, seria um momento posterior, ou seja, a lei está apta a produzir efeitos e está sendo respeitada no mundo dos fatos? A lei pegou, como alguns professores, didaticamente assim nos explicam?
Vejamos duas ementas trazidas de 2 Tribunais de Justiça diferentes. O primeiro acórdão que se segue é proveniente aqui de nossa cidade, Rio de Janeiro. (Apelação nº 2004.700.001775-0 – Juiz Marcus Quaresma Ferraz).
“VOTO Turma Recursal Criminal. Lesão corporal. Transação penal homologada e não cumprida. Prorrogação do prazo de cumprimento a requerimento do recorrente e também não adimplida a obrigação. Oferecimento da denúncia, a qual foi recebida na audiência de instrução e julgamento, quando inquirida a vítima e interrogado o réu. Sentença condenatória, sendo a pena privativa de liberdade fixada no patamar mínimo e substituída por prestação de serviços à comunidade. Nulidade do processo não reconhecida, tendo em vista que, descumprida a transação, esta torna-se insubsistente, retornando o feito ao estado anterior, dando-se oportunidade ao Ministério Público de oferecer a denúncia. O entendimento contrário o que não pode jamais ser aceito. Preliminar de nulidade rejeitada. Quanto ao mérito, o fato envolve violência doméstica e a palavra da vítima merece credibilidade, tanto mais estando amparada pelo auto de exame de corpo de delito, constatando os peritos a lesão corporal. Sentença que não merece reforma. Recurso improvido.”
Notemos que na situação apresentada, de violência doméstica, o grande descontentamento da norma, já visto por nós anteriormente, foi constatado. O agressor recebeu num primeiro momento a proposta de transação penal e a aceitou. Processualmente falando, em caso de desrespeito da proposta de transação penal, alguns penalistas entendem que uma vez descumprida a proposta o juiz, imediatamente, deveria proceder com o mandado de prisão. Verificamos, e estando de acordo, que esta alternativa doutrinária não foi adotada, preferindo a corrente preferida por outros estudiosos, ou seja, com o descaso do sujeito que anuiu com a transação penal, o Ministério Público deve imediatamente ajuizar a competente ação penal pública.
Alguns ainda podem estar “revoltados” com o desenrolar da estória narrada na jurisprudência trazida. O agressor teve sua pena privativa de liberdade convertida em serviços prestados à comunidade. Assim é o direito penal, muitas vezes lindo e apaixonante na teoria e altamente complexo na prática.
Nossa segunda jurisprudência, trazida para efeitos de visualização da prática é proveniente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo por muitos considerado o mais progressista do nosso país. Trata-se de recurso no Jecrim, nº 71000841338, com data de julgamento em 05.04.2006, com relatoria da magistrada Osnilda Pisa. Eis a ementa do acórdão:
“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. O Ministério Público não tem legitimidade para processar o autor de lesão corporal, quando ausente representação da vítima, mesmo considerando o advento da Lei 10.886/04, que majorou a pena mínima do delito de lesão corporal leve, em ambiente doméstico. As verdadeiras vítimas dessa violência são os filhos do casal. É óbvia a necessidade do encaminhamento das partes e, também, dos filhos a atendimento terapêutico. Tal medida, no entanto, poderá e deverá ser tomada independentemente de ação penal contra o autor do fato. Cabe, isso sim, comunicar a situação de violência ao Conselho Tutelar e a Promotoria da Infância e da Juventude para a adoção das medidas protetivas necessárias para resguardar a integridade física e psicológica dos filhos do casal (art. 101 do ECA). APELO DESPROVIDO. UNÂNIME”.
A grande perplexidade que constatamos nessa ementa é o entendimento contrário que expusemos em nossas considerações doutrinárias em capítulo anterior. Verificamos que a única e solitária vantagem da novidade legislativa do art. 129 §9º do CP seria, justamente, a não mais necessidade de representação do ofendido no caso dos crimes de violência doméstica. Eis um entendimento contrário e que vale a pena ser trazido. Perguntaríamos, então para nossos camaradas gaúchos: Haveria, portanto, alguma vantagem na criação do tipo de violência doméstica?

5 – Estatísticas e Reportagens

Entendemos ser de extrema importância colocar em capítulo isolado os dados, estatísticas e reportagens relativas à violência doméstica. Como já externamos, a intenção do trabalho é trazer também um singelo estudo social deste crime do Código Penal Brasileiro. O que leva um companheiro a agredir, muita das vezes sem motivo algum, sua companheira de anos de convivência? Vejamos os primeiros dados retirados da reportagem da Revista Veja, edição nº 1947, de 15 de março de 2006, cuja capa foi inserida na abertura deste artigo.
Esta pesquisa a seguir foi feita pela Organização Mundial de Saúde divulgada no ano passado, revelando que, no Brasil, 22% das mulheres que foram agredidas pelo marido, companheiro ou namorado (ou seus ex) não contaram a ninguém. Os demais dados também impressionam, senão vejamos:
 29% das brasileiras relataram ter sofrido violência física ou sexual pelo menos uma vez.
 16% classificaram a agressão como violência severa (ser chutada, arrastada pelo chão, ameaçada ou ferida com qualquer tipo de arma).
 60% não abandonaram o lar sequer por uma noite por causa da violência. E 20% saíram de casa uma vez – depois voltaram.
 No Rio de Janeiro, pesquisa do Instituto de Segurança Pública mostra 47.770 casos de lesão corporal dolosa contra mulheres registrados no ano passado. Em 87,3% das vezes, a vítima conhecia o agressor, e 53,5% dos agressores eram casados ou mantinham algum envolvimento amoroso com a vítima.
 A mesma pesquisa mostra que 30% de vítimas e agressores concluíram pelo menos o ensino médio.
 Segundo a Anistia Internacional, na União Européia morrem 600 mulheres por ano vítimas de violência doméstica.
 Na França, de acordo com o mesmo relatório, 67% dos homens que agridem suas mulheres têm o curso superior completo.
Um caso famoso que repercutiu em todos os jornais brasileiros, foi do jornalista Pimenta Neves, que devido ao ciúme, matou a namorada Sandra Gomide, em 2000. Ele continua solto.
Poderíamos imaginar que tais situações de violência doméstica acontecem muito mais nas chamadas periferias. Infelizmente não é bem assim. Inclusive, em nossas pesquisas de campo, pudemos verificar que hoje a mulher de baixa renda possui uma “força extra” para relatar uma agressão, que a mulher de classe média, por exemplo, não possui. Esta mulher mais preparada, intelectualizada, com um lar, sem tantos problemas como a mulher de baixa renda, enfrenta um “fantasma”: Como o círculo social que vivo vai encarar isso? Será que serei desprezada? Não é melhor manter as aparências?
Essa luta interna foi vencida pela comerciante fluminense Tamy Santiago, de 38 anos: “Em 2004, depois de dez anos de casada, descobri que ele tinha um caso com uma garota de 16 anos. Pedi a separação. Ele não aceitou e começamos a ter brigas cada vez mais sérias, até o dia em que ele me derrubou com um tapa. Como foi a primeira vez, fiquei calada. Mas aí começou uma fase de violência física constante, e depois de muito apanhar resolvi registrar queixa na Delegacia da Mulher. Tenho medo de sair de casa e de que aconteça algo comigo e com minha filha. O mais chocante é que ele é um arquiteto e urbanista, com pós-graduação, que não fumava, não bebia, não se drogava. Era um marido exemplar.”
Do realista relato acima, já podemos verificar outra situação praticamente visualizada em todos os casos de violência doméstica. Dificilmente a mulher agredida vai à Delegacia após a primeira agressão. Quando ocorre esta comunicação às autoridades, esta só acontece depois de uma severidade e constância nas agressões.
Mas o que tem sido feito para se almejar uma diminuição nestes casos pavorosos de agressão à mulher? Primeiramente uma mudança estrutural na sociedade. Antigamente a mulher que recorria às autoridades para comunicar uma agressão era vista com os olhos severos do conservadorismo e do machismo que imperava na época. Atualmente, podemos afirmar que a sociedade enobrece e exalta a mulher guerreira e corajosa que sai de casa, se enche de dignidade e vai até uma Delegacia.
Outro fator que incentiva essa mobilização feminina são as organizações não governamentais que ajudam as vítimas desse crime. São inúmeras as instituições que ajudam as vítimas. Podemos citar a “Bem-Vinda – Centro de Apoio à Mulher”, de Belo Horizonte, a “Casa Abrigo Maria Aydée Pizarro” e a “Casa Viva Mulher” ambas no Rio de Janeiro, e por fim a “Pró-Vida - Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica” no Espírito Santo, dentre outras.
Além disso, podemos verificar uma série de campanhas publicitárias, como a abaixo, que injetam força para que as mulheres sejam mais respeitadas. Isso tudo contribui para que a mulher faça valer ainda mais seus direitos e se sinta mais apta a comunicar as eventuais agressões sofridas.
“Campanha: Violência Contra a Mulher: onde tem violência, todo mundo perde
Uma campanha publicitária protagonizada por homens e dirigida a homens agressores.
Mensagem: Onde tem violência, todo mundo perde.
Proposta: Estímulo para mudança de atitude do agressor.
Uma campanha de comunicação social voltada para homens agressores. A proposta é colocar os homens no centro do debate sobre a violência doméstica. As mensagens da Campanha são um convite a uma mudança de atitude e do comportamento masculino frente à violência doméstica.Essas mudanças dependem, sobretudo, de aspectos culturais e de mentalidades, campo em que a mídia pode ser bastante eficaz.”
Podemos também inserir como fator importante e que antigamente impedia muito as mulheres de “abrirem a boca” era a falta de um lugar específico para que as vítimas pudessem expor, com tranqüilidade, as suas intimidades da vida conjugal. Uma verdadeira conquista foi a criação da Delegacia Especializada que atende a mulher. Em reportagem adiante, verificamos a importância desta Delegacia e que, infelizmente, vem constatando aumento nos casos.
A tecnologia também contribui para que a mulher moderna se instrua e saiba como proceder se for uma das vítimas. Diversos sites eletrônicos na internet dão conselhos, número de telefones e instruções às mulheres. Um dos principais deles, é o Portal da Violência contra a Mulher, donde retiramos mais estatísticas que se seguem:
 30% apontam a violência contra a mulher dentro e fora de casa em primeiro lugar, na frente de uma série de outros problemas, como câncer de mama e de útero (17%) e a Aids (10%). Os indicadores de preocupação com a questão de violência não mostram diferenças entre os sexos, tampouco na maioria das variáveis estudadas. Isto é, trata-se de um problema amplamente difundido no conjunto da sociedade. Mas algumas diferenças são importantes: a preocupação com a violência doméstica (dentro de casa) é mais significativa nas regiões Norte e Centro-Oeste, chegando a 62% das respostas.
 91% dos brasileiros consideram muito grave o fato de mulheres serem agredidas por companheiros e maridos. As mulheres são mais enfáticas (94%), mas, ainda assim, 88% dos homens concordam com a alta gravidade do problema.
 A percepção da gravidade da violência contra a mulher se confirma quando 90% dos brasileiros acham que o agressor deveria sofrer um processo e ser encaminhado para uma reeducação. O contraste entre a quase unanimidade destas opiniões e a realidade concreta na vida das mulheres é gritante. São poucos os casos que chegam a processo e escassas as instituições que lidam com reeducação do agressor.
 A idéia de que a mulher deve agüentar agressões em nome da estabilidade familiar é claramente rejeitada pelos entrevistados (86%), assim como o chavão em relação ao agressor, “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, que é rejeitado por 80% dos entrevistados.
 Em uma pergunta que pede um posicionamento mais próximo daquilo que o entrevistado pensa, 82% respondem que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher”. Em contrapartida, 16% (a maioria homens) conseguem imaginar situações em que há essa possibilidade. Observa-se que 19% dos homens admitem a agressão, assim como 13% das mulheres.
 Homens e mulheres fazem o mesmo diagnóstico: 81% dos entrevistados apontam o uso de bebidas como o fator que mais provoca violência contra a mulher; em segundo lugar, mencionado por 63% de entrevistados, vêm as situações de ciúmes em relação à companheira ou mulher.
 É opinião geral, em todos os segmentos da amostra, que os que mais perdem nas situações de violência doméstica são os filhos do casal: assim pensam 63% dos entrevistados. 14% das mulheres dizem que elas perdem mais e 16% dos homens se reconhecem como os maiores perdedores. O que estes números sugerem é que todos perdem quando há violência na casa. Trata-se de um flagelo e uma epidemia que atinge a todos.
Assim, encerramos este breve panorama da violência doméstica. Todavia, sabemos que os casos muito das vezes não ficam restritos às lesões corporais e, para finalizar nosso capítulo, uma recente reportagem onde a agressão do marido foi motivo para que uma dona-de-casa cometesse homicídio contra o agressor. É um problema gerado por outro, infelizmente.

6 – Conclusão

Problema social e jurídico, esta é conclusão que podemos tirar neste instante. Há solução?
Somos da opinião de que o Direito Penal não é capaz de modificar conjunturalmente todos os problemas enfrentados por um país desorganizado, como o Brasil. E como dói para nós afirmarmos isso, por sermos extremamente patriotas e esperançosos numa mudança estrutural. Amamos nosso país e gostaríamos muito que nossos governantes se preocupassem mais com a educação e a saúde desse povo tão sofrido. Daqui a pouco veremos nessas pesquisas, que se alteram com o tempo, uma porcentagem daqueles que raivosos com o sistema, com a falta de emprego, chegam em casa e através de xingamentos e agressões transferem todos os seus problemas em cima de sua companheira.
Por que não pensar um pouco mais nas estruturas básicas de um país? Pela ansiedade que anda nossos governantes, daqui a pouco a solução para os problemas da violência doméstica será fechar os bares, tendas e botecos perto das áreas residências para que o cidadão não possa beber antes de chegar em casa. Um verdadeiro absurdo, diríamos. Não é porque a bebida é um dos fatores que mais geram agressões familiares que devemos fechar os bares. Devemos ter muito cuidado com o imediatismo do povo brasileiro.
Ao estarmos em fase de término deste trabalho, nos perguntamos se o legislador estaria ainda preocupado e tendencioso a resolver este problema através das leis, que mais geram publicidade do que efetividade na resolução da mazela.
Em consulta eletrônica, pelo portal da Câmara dos Deputados, nos deparamos com novo projeto de lei, ainda em trâmite, que tenta reforçar a pena de detenção nos casos de violência doméstica. Eis a notícia vinculada em um dos informativos da Casa:
“A Câmara analisa o Projeto de Lei 6156/05, do deputado Vander Loubet (PT-MS), que altera o Código Penal (Decreto-Lei 2848/40) para determinar que, nos casos de violência familiar, não será permitida a conversão da pena - que atualmente é de detenção de seis meses a um ano - em pena restritiva de direito ou multa.
Mais leve do que a detenção ou a reclusão, a pena restritiva de direito é, como o próprio nome indica, uma restrição referente a diretos que as pessoas possuem. Exemplo disso é a proibição a alguém de se aproximar de determinada pessoa, de freqüentar casas noturnas ou ainda de consumir bebida alcoólica durante certo período.
Sensação de Impunidade: o autor do projeto lembra que a violência doméstica foi tipificada como crime pela Lei 10886/04. Esse foi, segundo ele, um dos primeiros passos para a proteção das relações familiares e, especificamente, de seus membros mais sujeitos a agressões: mulheres, crianças e idosos. No entanto, observa Loubet, a perspectiva de conversão da pena restritiva de liberdade em pena restritiva de direito ou multa tem dado aos agressores uma sensação de impunidade.
Já percebemos que não serão leis que acabarão com todo o processo gradual de violência doméstica. Despedimos-nos, concordando com a socióloga Heleieth Saffiotti, que defende um aprofundamentos nas relações humanas e numa ajuda ambígua entre o agressor e a vítima.
“As pessoas envolvidas na relação violenta devem ter o desejo de mudar. É por esta razão que não se acredita numa mudança radical de uma relação violenta, quando se trabalha exclusivamente com a vítima. Sofrendo esta algumas mudanças, enquanto a outra parte permanece o que sempre foi, mantendo seus habitus, a relação pode inclusive, tornar-se ainda mais violenta. Todos percebem que a vítima precisa de ajuda, mas poucos vêem esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de auxílio para promover uma verdadeira transformação da relação violenta.”

7 – Bibliografia

Bittencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Editora Saraiva.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Editora Impetus.

MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito Penal Parte Geral. Editora Forense.

NUCCI, Guilherme da Souza. Código Penal Comentado. Editora Revista dos Tribunais.

Sites – Portais Eletrônicos dos Tribunais de Justiça Brasileiros e das Organizações de Defesa da Mulher.

Reportagens e Estudos Realizados.

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