Do Excesso na Legítima Defesa

Rodrigo Bello

“A lei penal não pode exigir que, sob a máscara da prudência, se disfarce a renúncia própria dos covardes ou dos animais de sangue frio.” Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa (TJ/RS)

1 – Apresentação do Tema

Uma das principais teses utilizadas por advogados e defensores públicos quando da proteção dos interesses de seus, respectivamente, clientes e assistidos, durante o trâmite processual, é a legítima defesa.
Trata-se de conhecidíssimo argumento, onde, até o cidadão comum, com uma certeza divina, afirma com veemência que uma vez agindo em legítima defesa a pessoa não estaria cometendo crime algum. Não podemos tirar do senso comum esta idéia, que de certa maneira, está certa, mas nosso objetivo é estudar de forma mais profunda e técnica esta forma de causa de justificação ou excludente de ilicitude, como preferem alguns outros juristas.
Além disso, o intuito deste singelo trabalho não é de encaixar tão simplesmente a legítima defesa em nosso ordenamento jurídico e trazer o óbvio, por entendermos que tal abordagem estaria completamente esgotada, pois verificamos o tema em qualquer manual de Direito Penal espalhado no mercado.
A curiosidade e, de certa forma, o caráter prático que sempre procuramos trazer em nossos estudos, fez com que enfrentássemos o tema de forma mais aprofundada e real.
Partimos da verdade de que a legítima defesa, depois de estudada em sua raiz e com material probatório suficiente, traz a possibilidade de o acusado livrar-se de qualquer tipo de sanção penal. Estas e outras afirmações serão estudadas de forma introdutória em nosso trabalho, pois por amor à didática, partiremos de uma parte geral do estudo desta causa de justificação, para depois entrarmos na especialidade da abordagem, ora objeto deste artigo jurídico.
Pois bem. Quando do estudo do tema da legítima defesa, nos deparamos com terminologias importantíssimas, tais como “meios necessários” e “excesso”. São elas que nos dirão quando o sujeito utilizou-se da forma adequada e moderada para se defender e quando ele o ultrapassou, fazendo com que sua atitude excessiva tornasse sua conduta, anteriormente amparada pelo direito, agora repulsada pelo ordenamento.
Todavia, não nos esquivando da ordem teórica que o tema exige, indagamos, por exemplo: Como os tribunais brasileiros identificam o chamado excesso na legítima defesa? Quais as circunstâncias analisadas? Tão-somente as objetivas ou também as subjetivas? No que consiste a chamada legítima defesa sucessiva? Como aferir a proporcionalidade?
Mãos a obra! Estas perguntas, que nos motivam serão analisadas e pesquisadas, para que não fiquemos restritos a teoria e a beleza do Direito Penal, que algumas vezes fica aprisionado nos livros. Nada como ver a aplicação real daquilo que estudamos. A essência deste artigo é, sem sombra de dúvidas, trazer a efetividade de um tema complexo e apaixonante, permitindo-me dizer assim, pois iremos verificar que as emoções, em muita das vezes, serão o combustível, o móvel para a atitude defensiva.

2 – Introdução

Conforme discorremos quando da apresentação do tema, iremos situar o instituto da legítima defesa dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Iremos fazer isso da forma mais didática e simples possível, por acreditarmos que neste aspecto, a matéria encontra-se consolidada.
A legítima defesa encontra disposição legal, precisamente nos artigos 23, inciso II e 25 do Título II – Do crime, da Parte Geral do Código Penal Brasileiro (Decreto-lei 2848/40).
Assim dispõe o artigo 25 supra mencionado:
Art. 25. “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Agindo em legítima defesa, ou seja, defendendo-se de agressão injusta o sujeito não está cometendo ilícito algum, tendo em vista à ausência do segundo elemento essencial a configuração do delito, a ilicitude. Age conforme o Direito.
O mestre argentino Zaffaroni em sua obra conjunta com o professor Pierangeli, já avançando sobre o nosso estudo, nos ensina acerca do tema: “A defesa a direito seu ou de outrem, abarca a possibilidade de defender legitimamente qualquer bem jurídico. O requisito da moderação da defesa não exclui a possibilidade de defesa de qualquer bem jurídico, apenas exigindo certa proporcionalidade entre a ação defensiva e a agressiva, quando tal seja possível, isto é, que o defensor deve utilizar o meio menos lesivo que tiver ao seu alcance.”
A regra é de que todos os bens sejam amparados pela legítima defesa. Verificaremos, inclusive, que a defesa pode se dar contra direito próprio ou de terceiro.
Quanto à natureza jurídica, a legítima defesa encaixa-se como real causa de excludente de ilicitude, como prefere o legislador brasileiro ou causas de justificação, como preferem alguns estudiosos da matéria. A diferença terminológica que se faz presente no conceito não se percebe na conseqüência prática do instituto. Uma vez acobertada por uma das causas excludentes de ilicitude, o agente pratica atos lícitos. Ao lado da legítima defesa, são também casos de excludente de ilicitude, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito. Podemos colocar também nesse elenco uma causa supra legal de excludente de ilicitude visualizada pela doutrina brasileira: o consentimento do ofendido em algumas situações específicas.
Vistas essas observações iniciais, vejamos os elementos caracterizadores da legítima defesa, trazidos pelo professor paulista, Guilherme de Souza Nucci:
A) relativos à agressão 
a.1) injustiça;
a.2) atualidade ou iminência;
a.3) contra direito próprio ou de terceiro;
B) relativos a repulsa 
b.1) utilização de meios necessários;
b.2) moderação;
C) relativo ao ânimo do agente (elemento subjetivo), consistente na vontade de se defender.
Para nosso artigo, e para que não fujamos do objetivo deste, alguns desses elementos serão mais bem trabalhados a seguir. De plano, já podemos verificar que os elementos são objetivos e subjetivos e esta foi uma das preocupações de Rogério Greco em seu Curso de Direito Penal – Parte Geral, quando nos brindou com os ensinamentos do alemão Welzel: “As causas de justificação possuem elementos objetivos e subjetivos. Para a justificação de uma ação típica não basta que se dêem os elementos objetivos de justificação, senão que o autor deve conhecê-los e ter, ademais, as tendências subjetivas especiais de justificação. Assim, por exemplo, na legítima defesa ou no estado de necessidade (justificante), o autor deverá conhecer os elementos objetivos de justificação (a agressão atual ou perigo atual) e ter a vontade de defesa ou de salvamento. Se faltar um ou outro elemento subjetivo de justificação, o autor não se justifica apesar da existência dos elementos objetivos de justificação.”

3 – Espécies e Elementos da Legítima Defesa

“Na clássica definição de Soler, a legítima defesa é a reação necessária contra uma agressão injusta, atual e não provocada, tendo a legislação pátria estatuído que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual e iminente, a direito seu ou de outrem". Assim, se não reconhecido um dos pressupostos da causa de justificação, isto é, sobre as circunstâncias fáticas que configurariam uma situação justificativa, ficam sequencialmente prejudicados os demais, deixando-se, por obvio, de indagá-los.” (Processo nº 1998.050.04277-Apelação Criminal-TJ/RJ)
Com essas palavras o então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor Álvaro Mayrink da Costa nos demonstra claramente, em um de seus julgados, a importância do capítulo que ora se inicia. Somente poderemos enfrentar a questão da legítima defesa, e principalmente a do seu excesso, quando estivermos de posse dos conhecimentos quanto aos elementos que incorporam esta causa de justificação.
Todavia, antes veremos os tipos de legítima defesa identificáveis por nossos autores:
(a) Legítima defesa real ou autêntica  é aquela que a situação de agressão realmente é verificável no mundo dos fatos, surgindo assim, a possibilidade evidente de defesa proporcional.
(b) Legítima defesa imaginária ou putativa  pela terminologia fica fácil conceituarmos essa 2ª espécie de legítima defesa. Nesta, o agente acredita que está sendo agredido e repele a suposta agressão. No entanto, essa atitude só foi idealizada mentalmente por ele, pois no mundo dos fatos ela jamais aconteceu.
Isto posto, e esclarecendo que para o presente estudo nos ateremos à legítima defesa real, é hora de identificarmos os seus respectivos elementos:
 agressão injusta atual ou iminente;
 direito próprio ou alheio;
 animus defendi (requisito subjetivo);
 meios necessários usados moderadamente.

(A) Agressão Injusta Atual ou Iminente:
Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt: “Define-se a agressão como a conduta humana que lesa ou põe em perigo um bem ou interesse juridicamente tutelado(…) Ponto de partida para análise dos requisitos da legítima defesa será a existência de uma agressão injusta, que legitimará a pronta reação.”
Após a verificação da injustiça na agressão passaremos ao estudo quanto da sua atualidade e iminência. Nossa intenção não é complicarmos conceitos breves e de fácil percepção, por isso simplesmente afirmaremos que a atualidade, para efeitos de legítima defesa, é verificada quando a agressão está acontecendo e a iminência, quando está prestes a acontecer.
Mais uma vez nos valendo dos sábios ensinamentos do professor Mayrink, esclarecemos que a agressão não seria tão somente a física. Diz ele: “A doutrina dominante não adota a força ou a violência material como elemento imprescindível na agressão, mas como um ato contrário ao direito de outrem, dando amplitude necessária para adaptá-la ao instituto da legítima defesa. A doutrina imperante entende que a agressão não implica nota de violência física, sustentando que a agressão é a lesão de um direito.”
Acerca do tema assim já se pronunciou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Quem se predispõe a delinqüir deve ter em conta dois perigos, igualmente temíveis: o perigo da defesa privada e o da reação penal do Estado. Não há indagar se a agressão podia ser prevenida ou evitada sem perigo ou sem desonra. A lei penal não pode exigir que, sob a máscara da prudência, se disfarce a renúncia própria dos covardes ou dos animais de sangue frio. Em face de uma agressão atual (ou iminente) e injusta, todo o cidadão é quase como um policial, e tem a faculdade legal (além do dever moral e político) de obstar in continenti e ex próprio Marte o exercício da violência ou da atitude injusta”. (Processo nº 70010006971 – Recurso de Ofício – Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa).

(B) Direito Próprio ou Alheio:
Legítima defesa própria será aquela em que o sujeito repele agressão injusta em face de um direito individual que lhe pertence. Já a legítima defesa de terceiros, evidentemente, é aquela feita por pessoa diversa do titular do bem jurídico agredido.
Assis Toledo, adverte: “Quando se tratar de bens disponíveis e de agente capaz, a defesa por terceiro não pode fazer-se sem a concordância do titular desses direitos, obviamente.”
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo, no processo nº 024.89.034181-1, Apelação Criminal, Des. Adalto Dias Tristão, reconheceu a legítima defesa de terceiro. Senão vejamos: “Legítima Defesa do Patrimônio de Terceiro - Matéria de Direito a ser decidida pelo Conselho de Sentença - Soberania do veredicto dos jurados. As provas existentes nos autos convenceram aos Jurados que, por maioria de votos, decidiram estar o recorrente, com sua conduta, defendendo, legitimamente, a posse do patrimônio de terceiros.”

(C) Consciência da Defesa (animus defendi):
Trata-se de elemento subjetivo para a configuração da legítima defesa. Há uma necessidade na sabedoria da utilização da excludente de ilicitude.
O professor Rogério Greco traz uma posição isolada, porém de peso, de um dos maiores penalistas de nossa história. Nelson Hungria, “causalista convicto, dizia que a legítima defesa só pode existir objetivamente. Nada têm estes a ver com a opinião ou crença do agredido ou do agressor.”
Entretanto, não é o que percebemos em julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que coloca o elemento subjetivo como necessário para a configuração desta excludente de ilicitude: “Torna-se dificultoso admitir a legítima defesa na fase de pronúncia, em que impera o princípio in dúbio pro societate, quando, em princípio, não incidem no cenário fático a proporcionalidade e oportunidade da ação do pronunciado, a moderação dos meios por ele utilizados ou qualquer indicativo de necessidade essencial desta mesma ação para proteger a sua própria vida.” (Processo nº 1.0027.98.014558-8/001(1) – Recurso em Sentido Estrito – Des. Armando Freire).

(D) Meios Necessários, usados moderadamente (proporcionalidade):
Por se tratar do elemento da legítima defesa mais importante para os fins deste trabalho, iremos analisá-lo em capítulo seguinte.

4 – Meios Necessários vs. Excesso

Como os tribunais brasileiros identificam o excesso na legítima defesa numa situação fática submetida a julgamento? No que consiste o excesso? Há um parâmetro definido?
Estas e outras perguntas serão analisadas neste capítulo, que traz o último elemento desta causa de justificação. Neste instante, responder a tais indagações seria avançarmos demasiadamente em nosso estudo. Entendemos que, primordialmente, devemos nos ater a alguns conceitos prévios importantes.
Assim, agir em excesso significa que o sujeito, agindo em legítima defesa, ultrapassou o limite do razoável em relação à sua defesa. Sua reação à agressão injusta, atual ou iminente foi completamente desproporcional ao que o chamado por alguns, homem-médio, faria no mesmo contexto.
E neste ponto reside a dificuldade. Os seres humanos são diferentes entre si. Todos nós sabemos disso. As emoções sentidas são intensas para uns e brandas para outros. Cada um reage conforme seu estado de espírito. Seria imprescindível exigirmos sempre um equilíbrio emocional da pessoa agredida? Algumas agressões para uns podem soar como um verdadeiro gongo para uma luta de boxe, quanto para outros pode parecer apenas uma simples manifestação boba e sem prejudicialidade alguma. Vivam as diferenças, já diziam alguns.
Sobre o tema, nos valeremos das sempre enigmáticas e profundas palavras do professor René Ariel Dotti, que traz também a colação de um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo: “A moderação consiste na prudência com que o agente deve se comportar sem que tal consideração tenha caráter meticuloso como à tentativa de pesar as reações humanas com a balança do ouvires. Como acentua o TJ/SP, tratando-se de legítima defesa, não se exige rigor matemático na proporcionalidade do revide à agressão injusta, pois, no estado em que se encontra, não dispõe o agredido da reflexão precisa, capaz de ajustar a sua reação em eqüipolência completa com o ataque”.
Assim, como aferir se a agressão foi excessiva? Qual a conseqüência jurídica desta conduta?
O artigo 23 § único do CP traz a disposição expressa sobre o excesso:
“O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
Cabe-nos diferenciar os tipos de excesso elencados no dispositivo acima, sem deixar de afirmar que o excesso não é exclusivo da legítima defesa, podendo ser verificado nas demais excludentes de ilicitude. Pois bem, sem maiores problemas, o excesso doloso será quando o agente, agindo livre e conscientemente, repele a agressão de uma forma intensa e a faz propositadamente. É neste excesso que podemos verificar as emoções exaltadas, a vingança, o ódio, a raiva. Já o excesso culposo, é aquele não querido pelo agente quando responde a injusta agressão. Por descuido o excesso é cometido. Nas palavras do professor Nucci: é o “erro de cálculo”.
Interessante foi à percepção do legislador penal de 69 em relação a algumas emoções que poderiam ser sentidas pelo agente no momento do cometimento do excesso. O legislador da época trazia alguns casos de impunidade do excesso, quando resultasse de excusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo (art. 30 §1º). Como estas situações não foram repetidas pelo legislador atual, a jurisprudência e a doutrina exaltam a aplicação deste chamado excesso exculpante. O que era disposição legal, agora é entendimento de nossos tribunais.
Prova viva desta afirmação em epígrafe é a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Apelação Crime nº 699421871, Des. Sylvio Baptista Neto, 11/08/1999), que inserimos abaixo:
“Legítima Defesa. Excesso Exculpável Verificável. Absolvição. Embora não conste da legislação penal atual, era previsto no Código Penal de 1969, deve-se considerar não punível o excesso, praticado em legítima defesa, quando resultante de excusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo. Isto porque as causas excludentes de culpabilidade, como as que excluem a ilicitude, não se esgotam no rol enumerado no ordenamento penal, pois são estabelecidas em favor do réu. No caso, este excesso exculpante subsiste como causa extralegal de exclusão de culpabilidade. E por excesso exculpante tem-se a reação defensiva que, por suas singularidades, não é merecedora de apenação. Muitas vezes a violência da agressão, ou sua subtaneidade, criam um estado de medo, de surpresa, ou de perturbação de ânimo que interferem de sobremodo na reação defensiva. O agredido fica sem condições de balancear adequadamente a repulsa em função do ataque. E o que pode ter, no máximo, acontecido no caso em tela, pois a reação do apelante aconteceu após a agressão da vítima contra seu (do réu) filho menor, depois de, reiteradamente, causar tumultos em seu estabelecimento comercial. Absolvição que se impõe”.
Quanto às conseqüências jurídicas, se o agente age com excesso doloso, a legítima defesa não poderá ser tese defensiva e haverá responsabilidade penal em cima desta conduta excessiva e dolosa. Por outro lado, agindo com excesso culposo, o agente responderá a título de culpa.
Iniciemos a análise jurisprudencial da matéria, trazendo a colação de um recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (2005.050.02142 - Apelação Criminal - Des. Antonio Jose Carvalho). Nesta análise, já poderemos verificar a complexidade da questão onde o juiz de 1ª instância decidiu pela aplicação do excesso doloso, e, consequentemente, não aplicou a causa de justificação, enquanto que a 2ª Câmara Criminal, dando provimento à apelação criminal, reformou a sentença, entendendo não ter havido excesso na conduta, e, consequentemente, reconheceu a legítima defesa.
Eis a decisão colegiada:
“Lesão corporal seguida de morte. Apelante que reage a injustas agressões da vitima que o injuria, ofendendo-o moralmente, perseguindo-o e cuspindo-lhe no rosto por duas vezes. Reação consistente em um soco e um pontapé. Vítima que veio a falecer dias apos o fato. Sentença condenatória que entendeu haver excesso na legítima defesa. Legítima defesa configurada. Provimento do apelo defensivo. "Decisum" monocrático reformado para absolver o apelante reconhecendo-se a exclusão de ilicitude do ato. Vítima que após ofender e cuspir no Apelante, que deixa local, o persegue, atira-lhe uma camisa no rosto e novamente lhe cospe. Reação consubstanciada em um soco que derruba a vítima, que novamente se levanta e é empurrada, vindo a cair e insiste no confronto e, ao tentar levantar mais uma vez, é atingida com um pontapé. Único meio encontrado pelo Apelante, naquelas circunstâncias, para fazer parar as injustas agressões. As reações humanas variam de indivíduo para indivíduo. Critérios de moderação dos meios de retorsão que deve ser avaliado em cada caso concreto. Não se pode exigir do agredido reflexão suficiente, no momento em que reage a injusta agressão sofrida que mensura a moderação do seu ato, que é instintivo e reflexo.”
Destarte, as conseqüências jurídicas do excesso não param por aqui. Agindo em excesso, o agredido, como vimos, ultrapassa os limites da proporcionalidade e, o que era, lícito, se torna ilícito. Nessa hipótese, quando a agressão excessiva passa a constituir atitude ilícita, surge para o autor da agressão inicial, a possibilidade de se defender do excesso então praticado. Podemos falar então em legítima defesa sucessiva. Nas palavras do altamente consultado, Rogério Greco: “Aquele que viu repelida a sua agressão, pois que injusta inicialmente, pode agora alegar a excludente a seu favor, porque o agredido passou a ser considerado agressor, em virtude de seu excesso”.
Como já afirmado anteriormente, o excesso disposto no artigo 23 §único do CP não se aplica tão somente à legítima defesa. Vejamos, em interessante acórdão do progressista Tribunal gaúcho, o confronto que pode existir com outra causa de excludente de ilicitude, no caso, o estrito cumprimento do dever legal (art. 23 inciso III do CP). Interessante notarmos que no julgado abaixo, os envolvidos agiram com excesso, ou seja, os meios necessários não foram respeitados.
“Disparos de Arma, em via pública. Servidores da Segurança Pública. Legítima Defesa e Estrito Cumprimento do Dever Legal. Excesso. Inocorrência. Não agem ao abrigo das causas de excludentes de ilicitudes policiais militares que, segundo suas próprias versões, para conter ou em razão de racha automobilístico, em altas horas da madrugada, desfecham tiros na direção dos veículos envolvidos. Excesso na conduta que afasta tanto o estrito cumprimento do dever legal quanto à legítima defesa, teses com que lida a defesa técnica. Apelos defensivos a que se nega provimento. (Apelação Crime Nº 70012891909, Sétima Câmara Criminal, Des. Marcelo Bandeira Pereira, 17/11/2005)”
Pesquisas doutrinárias nos levam ainda há um outro tipo de excesso exculpável, chamado de acidental. Trata-se do excesso decorrente de caso fortuito, que é considerado penalmente irrelevante.
Na jurisprudência, assim decidiu o Tribunal de Justiça da Paraíba: “A decisão dos jurados, inobstante reconhecendo a moderação, de que o meio utilizado na repulsa não era necessário, não afasta, de pronto, a legítima defesa, mas apenas reconhece um excesso. Logo, a condenação somente se consolida se afirmado ter havido esse excesso, a título de dolo ou culpa. Nesse sentir, negando, entretanto, o Júri ter o réu se havido com excesso doloso ou culposo, estará absolvendo-o, mediante o reconhecimento do excesso acidental ou não punível, decorrente de caso fortuito, não restando alternativa ao presidente do Júri senão firmar decisão absolutória”. (Apelação nº 2001.004.108-4, Des. Raphael Carneiro Arnaud, O6/09/2001).
Finalizando nossa pesquisa jurisprudencial, até para não ficarmos demasiadamente analisando julgados dos diversos tribunais pátrios, analisaremos uma última decisão do Superior Tribunal de Justiça. O motivo da colação desta decisão é pela visualização prática e completa de alguns conceitos que abordamos acima.
Neste julgado, verificaremos o excesso, logicamente, mas também poderemos analisar a legítima defesa da honra, que é um bem jurídico protegido, e, concluindo, veremos também a legítima defesa de terceiros. Estes os aspectos de direito material.
Quanto aos aspectos processuais, poderemos ver também a discussão acerca da apresentação dos quesitos formulados pelo juiz-presidente do Tribunal do Júri. A importância da formulação destes salta aos olhos quando da indagação acerca das excludentes de ilicitude.
Eis o julgado (STJ - Resp 31881 / DF ; 1993/0002666-6 - Ministro Adhemar Maciel):

“Penal. Homicídio Simples. Excesso Doloso na Legítima Defesa. Apelação da Assistência de Acusação na ausência de recurso do Ministério Público por ter sido a sentença condenatória. Viabilidade. Júri. Segunda anulação pelo Tribunal de Justiça por entender que cabia ao Presidente do Tribunal do Júri prosseguir com as duas outras séries de quesitação (Legítima Defesa da própria honra e Legítima Defesa da Honra dos Filhos).
Recurso Especial Conhecido e Provido.
I – O apelado, em segundo Júri, foi condenado a seis anos de reclusão (121 caput CP). A defesa apresentou três séries de quesitos: a) legítima defesa própria; b) legítima defesa da própria honra e c) legítima defesa da honra de terceiros (filhos).
O Juiz-presidente do Tribunal do Júri parou na primeira série, uma vez que o conselho de sentença reconheceu que o réu havia agido com excesso doloso ao se defender. Assim prejudicadas teriam restado as duas outras séries. A assistência da acusação apelou para ver a pena majorada.
O Tribunal de Justiça entendeu, por seu turno, que houve cerceamento de defesa: cabia ao juiz continuar com as duas outras séries de quesitações e, inclusive, com o quesito da qualificadora. Anulou o julgamento. A assistência da acusação interpôs recurso especial.
II- Mesmo em se tratando de sentença condenatória, pode a assistência da acusação, na omissão do Ministério Público, pelejar por pena maior. Não se trata de vindita, mas busca pela pena justa. Precedentes do STF.
III- Não se pode invocar cerceamento de defesa in casu. Se os jurados reconheceram que o recorrido (réu), embora tenha matado em defesa própria, agiu com excesso doloso, mister não se fazia continuar com as duas outras séries de quesitos (legítima defesa da própria honra e da honra dos filhos). Também prejudicada restou à qualificadora. Ademais, por ocasião do julgamento a defesa não lavrou nenhum protesto. Não há registro em ata.
IV- Recurso Especial Provido”.

5 – Conclusão

Chega o instante de concluirmos nosso artigo. Acreditamos que nosso objetivo foi alcançado. Nossa maior intenção foi trazer, mesmo que sucintamente, a análise jurisprudencial de um tema interessante que é o excesso na legítima defesa. O fizemos trazendo a colação de alguns interessantes julgados colhidos nos sites eletrônicos de nossos tribunais brasileiros.
Pudemos verificar em nossa pesquisa jurisprudencial que o ponto nodal do tema está na análise fática da situação. Percebemos também que neste ponto os juízes devem possuir uma sensibilidade ímpar para não cometer injustiças. Há uma preocupação enorme nas emoções envolvidas e até me arriscando a dizer, uma colocação do julgador naquela situação que ora se encontra para sua análise jurídica e futura e importante decisão.
Temas controvertidos, situações inusitadas, envolvimentos, paixões, entes queridos, tudo isso é colocado no processo criminal e levado ao magistrado. Acredito que muitos desses juízes se perguntam: “Se eu estivesse nesta situação agiria assim?”; “Se fosse um filho meu eu faria isso?”
O Direito jamais deve se afastar da sensibilidade, assim acreditamos. As emoções, às vezes, não possuem lógica…
Vimos, por exemplo, que policiais não poderiam ter simplesmente atirado em direção a veículos que praticavam “racha”. O Tribunal entendeu pelo excesso do estrito cumprimento do dever legal. Percebemos, outrora, julgadores sensíveis às emoções humanas e, inclusive, afirmando que a lei penal não pode tão-somente proteger os covardes que preferem não se defender. Outras situações vistas foram a da legítima defesa da honra, a legítima defesa de terceiros, no caso de um filho.
Nos perguntamos se poderíamos exigir de um zeloso pai um equilíbrio matemático quando alguém comete uma injusta agressão a seu filho querido?
Isso tudo faz com que nosso tema pareça e seja transmitido como emocionante, já que estamos falando tanto em reações humanas.
Nossa pesquisa continuará, pois não só os julgadores devem ter uma atitude primordial na questão do excesso na legítima defesa, mas também o estudioso da matéria, que analisa e tenta transmitir de forma clara, contundente e simples um tema que está em constante evolução.

6 – Bibliografia

Bittencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Editora Saraiva.

Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal. Editora Forense.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Editora Impetus.

MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito Penal Parte Geral. Editora Forense.

NUCCI, Guilherme da Souza. Código Penal Comentado. Editora Revista dos Tribunais.

Sites – Portais Eletrônicos dos Tribunais de Justiça Brasileiros.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. Editora Revista dos Tribunais.

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